Publicado originalmente no blog da Rede Comuá
Foto de Rineshkumar Ghirao na Unsplash
Por Albert França e Matheus Viana*
No Brasil, as organizações populares – entre elas movimentos sociais, coletivos, associações de base comunitária e tantas outras formas de luta coletiva popular – têm sido protagonistas centrais na defesa e na conquista de direitos. Ao longo das últimas décadas, esses sujeitos coletivos vêm construindo alternativas ao modelo hegemônico de desenvolvimento, enfrentando desigualdades históricas e enraizando práticas de participação popular nos territórios.
Essas foram fundamentais para a criação de políticas como o Sistema Único de Saúde (SUS), resultado direto da mobilização da Reforma Sanitária; para a construção do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que fortaleceu a agricultura familiar e chegou a movimentar R$ 1,2 bilhão em 2012; e para a conquista de instrumentos como o Minha Casa Minha Vida – Entidades, voltado à autogestão habitacional por movimentos de moradia. Essas organizações também estiveram na linha de frente das lutas por igualdade racial e de gênero, contribuindo para a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e para o reconhecimento do nome social de pessoas trans em órgãos públicos.
São elas que garantem, todos os dias, que a democracia brasileira exista para além das instituições formais, sendo viva, enraizada e em permanente disputa a partir dos territórios.
Apesar dessa contribuição inegável à defesa da democracia e à promoção da justiça social, as organizações populares seguem sendo alvos preferenciais da criminalização promovida pela extrema-direita e por setores neoliberais que, mesmo em governos progressistas, muitas vezes questionam sua legitimidade ou invisibilizam sua potência política. Essa ofensiva ideológica e institucional se expressa também nas barreiras ao acesso a recursos financeiros, públicos e privados.
O Censo GIFE 2022-2023 revela o quanto esse cenário é crítico: apenas 9% dos recursos privados mapeados vão para iniciativas de defesa da democracia, direitos e cultura de paz; outros 9% são destinados ao desenvolvimento local, territorial e comunitário; e somente 4% têm como foco o fortalecimento institucional de organizações da sociedade civil e movimentos sociais. A exclusão se aprofunda quando olhamos para os marcadores de raça, gênero, classe e território: organizações lideradas por pessoas negras, indígenas, mulheres, juventudes e LGBTQIA+ enfrentam ainda mais obstáculos para acessar editais, fundos e parcerias institucionais, perpetuando desigualdades históricas no próprio campo da filantropia.
A pesquisa que desenvolvi no âmbito do Programa Saberes da Rede Comuá, intitulada “A dificuldade de acesso dos movimentos sociais a recursos e a construção de uma nova cultura política de doação”, analisa mais profundamente essas desigualdades ao mapear, a partir do olhar das próprias organizações, os principais entraves enfrentados no acesso a recursos. Os dados são reveladores: 40% das organizações identificam a burocracia excessiva como o principal obstáculo; 30% mencionam a falta de conhecimento técnico exigido nos processos de captação; 15% apontam a rigidez na aplicação dos recursos; 10% relatam a ausência de informações claras sobre oportunidades; e os 5% restantes destacam a falta de visibilidade e reconhecimento de suas iniciativas por parte de potenciais financiadores.
Esses números evidenciam um padrão estrutural de exclusão que afasta justamente quem mais precisa de apoio: às iniciativas que estão na base, inseridas em territórios vulnerabilizados, que atuam com criatividade, legitimidade e impacto direto. Mais do que uma questão técnica, trata-se de uma escolha política: os mecanismos tradicionais de financiamento, sejam eles públicos ou privados, seguem operando sob lógicas que concentram poder e desconfiança, ignorando saberes locais e formas coletivas de organização.
Diante desse cenário, cresce a urgência de construir e fortalecer uma cultura de doação e financiamento que seja ancorada na solidariedade, na confiança e na redistribuição radical de recursos. É nesse horizonte que emerge uma proposta que estamos trabalhando na Pacová – Articulação de Cooperação do Campo à Cidade: a filantropia solidária.
A filantropia solidária parte do reconhecimento de que doar recursos é, antes de tudo, uma ação política. Ao contrário da filantropia tradicional, marcada por relações assimétricas, exigências burocráticas e centralização das decisões, como já destacado pelas próprias organizações nos dados trazidos anteriormente, a filantropia solidária se estrutura a partir da escuta ativa, da confiança mútua e da valorização dos saberes e estratégias produzidas nos territórios. Nessa abordagem, a solidariedade não é um valor abstrato, mas um método concreto: quem doa e quem recebe compartilham um mesmo compromisso com a transformação da realidade e a construção de justiça social. A doação se torna, assim, um instrumento estratégico para fortalecer os territórios, reparar desigualdades históricas e garantir a continuidade de lutas fundamentais para o presente e o futuro da democracia. Um lugar onde a solidariedade não é caridade, mas pacto. Onde doar não é ajudar, é se corresponsabilizar. Onde apoiar organizações populares não é filantropia de ocasião, é estratégia de justiça social.
Acreditamos, no entanto, que esse método solidário não deve se restringir ao campo filantrópico privado. Acreditamos que o Estado também precisa incorporar tais princípios no desenho e na implementação de suas políticas públicas de fomento. Isso significa construir mecanismos de financiamento público que respeitem a autonomia das organizações populares, reduzam barreiras de acesso e reconheçam a legitimidade política dos seus projetos.
A defesa de um modelo de financiamento público e privado que reconheça, sustente e proteja a ação das organizações populares como parte fundamental de uma democracia radical. A filantropia solidária, nesse sentido, não é apenas um gesto ético, mas um compromisso com a justiça histórica, com a transformação social e com a sobrevivência dos projetos coletivos que, desde sempre, sustentam as possibilidades de um outro Brasil.
*Albert França é militante dos movimentos sociais, diretor-executivo da Pacová – Articulação de Cooperação do Campo à Cidade e membro do Movimento por Uma Cultura de Doação.
*Matheus Viana é coordenador de operações da Pacová – Articulação de Cooperação do Campo à Cidade e gestor do Fundo de Apoio a Organizações Populares.