Semear Resiliência e Justiça Climática: A Resposta à Crise Climática Brota nos Territórios

Por Matheus Viana¹

A agricultura familiar e as organizações populares têm sido a espinha dorsal da soberania alimentar no Brasil. Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 70% dos alimentos consumidos no país vêm da agricultura familiar. Enquanto o agronegócio promove destruição ambiental em escala industrial, avançando com monoculturas envenenadas e degradantes, são essas comunidades que oferecem alternativas concretas e vitais para enfrentar a crise climática e social que atravessamos.

A monocultura, alicerce do agronegócio, não só devasta o solo, expulsa populações e envenena a água, mas também promove um modelo concentrador de terra e riqueza que, ao priorizar o cultivo massivo de commodities para exportação, empobrece ecossistemas inteiros, esgota recursos naturais e destrói modos de vida. A expansão predatória da fronteira agrícola é marcada por violência no campo, criminalização de lideranças e desrespeito sistemático aos direitos territoriais de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) revelam a brutalidade desse processo: apenas no primeiro semestre de 2024, foram registrados 1.056 conflitos, incluindo 872 disputas por terra, 125 por água e 59 casos de trabalho escravo, enquanto as ameaças de expulsão cresceram de 44 para 77 e a pistolagem se mantém alarmante, com 88 ocorrências. A contaminação por agrotóxicos explodiu de 19 casos em 2023 para 182 em 2024, atingindo especialmente posseiros (235 casos), indígenas (220), quilombolas (116) e sem-terra (92), sendo os principais agressores fazendeiros, empresários, governo federal e grileiros. Entre 1985 e 2021, a CPT registrou 302 assassinatos e 59 massacres, revelando um ciclo contínuo de extermínio contra aqueles que lutam pela permanência nos territórios.

Em contraposição a esse cenário de destruição, a agricultura familiar constrói alternativas concretas e potentes. A adoção de práticas agroflorestais e de captação de água da chuva, enraizadas no saber ancestral e popular, demonstra que é possível produzir alimentos de maneira regenerativa, sem destruir a terra. Diferente do deserto verde das monoculturas, a agricultura familiar restaura solos, protege nascentes, promove biodiversidade e gera alimentos saudáveis.

A ancestralidade e o conhecimento tradicional não são apenas elementos culturais, mas estratégias poderosas de resistência e resiliência. Essas práticas, muitas vezes passadas oralmente ao longo de gerações, demonstram uma inteligência ecológica profundamente conectada com os ciclos da terra. No entanto, esses saberes continuam invisibilizados por um sistema que insiste em impor tecnologias e financiamentos desenhados para o lucro rápido e predatório.

O modo como a filantropia tradicional trabalha com esses temas é visivelmente insuficiente, burocrático e aquém do necessário para alcançar os territórios onde a resistência acontece. Essa lógica centralizadora e institucionalizada desconsidera as dinâmicas locais, impondo modelos que ignoram o poder transformador das iniciativas populares. O Censo GIFE 2022-2023 corrobora essa realidade: dos R$ 4,8 bilhões investidos pelo investimento social privado (ISP) no Brasil, apenas 2% foram direcionados para agricultura, alimentação e nutrição, e 4% para o fortalecimento institucional de organizações da sociedade civil (OSCs) e movimentos sociais. Em contraste, 33% dos investimentos foram destinados à educação formal ou não formal, evidenciando uma distribuição desigual dos recursos e um descompasso gritante com as demandas urgentes dos territórios.

Se o financiamento climático e as filantropias que buscam contribuir com a justiça climática desejam ter participação efetiva, é fundamental reconhecer que o enfrentamento à crise passa necessariamente pela ruptura com o modelo agrícola dominante. É preciso apoiar de maneira decidida e irrestrita a agricultura familiar, as práticas agroflorestais, o manejo tradicional das sementes, o conhecimento ancestral que resiste à devastação promovida pelo agronegócio.

As organizações populares não pedem caridade, exigem justiça. Justiça que passa por reconhecer e financiar práticas agroecológicas que regeneram a terra ao invés de destruí-la. Justiça que exige respeito aos modos de vida que priorizam o bem comum sobre o lucro imediato. Justiça que implica enfrentar as estruturas econômicas e políticas que privilegiam a devastação ambiental em nome de uma falsa prosperidade.

A agricultura familiar é, acima de tudo, resistência. Ela representa a verdadeira alternativa diante de um sistema que se alimenta da destruição. Por isso, é responsabilidade de todas e todos que se comprometem com o futuro do planeta apoiar essas iniciativas, com recursos concretos e um compromisso genuíno com aqueles que, sendo uns dos mais afetados pela crise, estão na linha de frente, criando soluções para enfrentá-la.

¹ Matheus Viana é coordenador de Operações da Pacová – Articulação de Cooperação do Campo à Cidade e coordenador da pesquisa Semear.